sexta-feira, 18 de março de 2011

A saga de um anão glutão


A saga de um anão glutão
 
Eis a história de um anão,
Um glutão, que de tudo comia de montão.


      Olhou para o bolo de morango. O anjinho do lado esquerdo berrava que, em prol do bem-estar de seu estômago, seria sensato não comê-lo, pois já havia devorado um frango assado, duas porções de batatas-fritas acompanhadas de um filé mal-passado, dois pedaços de uma torta de banana e uma fatia de uma cuca alemã com schimia de abóbora. Mas do lado direito, o diabinho berrava mais alto ainda, dizia que desperdiçar aquela exuberância seria um pecado, que fazia tempo que não via um bolo como aquele em pleno século XXI, tempos em que já não se faziam bolos de morango como antigamente, e que se arrependeria até o dia de sua morte se ao menos não o experimentasse.
      Dez minutos. Não havia mais bolo. E quase não havia mais tripas também, pois vomitou sem parar por mais dez minutos. Sentou-se no sofá da sala, mais morto do que vivo. Não demorou muito, e lá estava o anjinho berrando mais alto ainda sermões e lições de moral, chamando-o de pecador infame, entre outras ladainhas
      Lá veio também o diabinho com dois copos de água gelada com sal de fruta. O guloso tentou perguntar o porque de dois copos, mas o anjo não o deixou falar, tão empenhado estava em seus sermões. O diabo jogou um copo na cabeça do anjo: “Para te esfriar um pouco, seu esquentadinho!” Entregou o outro para o homem, que foi rapidinho goela abaixo. Dormiu. Em poucas horas, já estava pronto para mais um daqueles bolos de morango!

      No dia seguinte, foi atrás de comida. Nos armários procurou, na geladeira fuçou...Debalde. Em delírio entrou, e no supermercado correu, e na rua se surpreendeu.

      O calor de 50º parecia derreter sua barriga gordurosa, e na rua as pessoas imploravam por água e comida, rastejavam a seus pés, e o anão glutão fugia de medo. Fazia semanas que não saía de casa, pois estivera em uma espécie de hibernação alimentícia. Parecia um urso polar, que comia e hibernava.  Era quase um albino, que diante do sol escaldante sua pele quase derretia.
      Chegou com sofreguidão ao mercado, blasfemando que os retirantes que de fome morriam o estavam atrasando, que precisava comer, pois já fazia oito horas que nada estômago adentro colocava!
      Quando lá chegou, percebeu que nada havia, toda a comida parecia haver evaporado. Foi de novo à rua. Estava pensativo: “o que teria acontecido com a comida?” Logo se viu cercado de seres humanos, criaturas famintas, que vagavam em busca de alimento. Bradou aos quatro cantos: “Pelo amor de deus, alguém sabe o que aconteceu com a comida?” Só ouviu grunhidos sôfregos de palavras que se assemelhavam a fome e sede. Lá estavam um bando de seres esquálidos, formados de pele, ossos e tripas cercando um porquinho gordo, que berrava “comida” sem parar.
      Era difícil de se acreditar, mas a região sul do Brasil vivia um período de seca extrema, semelhante àquela que no Ceará ocorreu em 1877. Houvera previsões para uma seca no ano de 2066, mas ninguém a ela deu ouvidos. Agora havia apenas um sol escaldante, 50º à sombra, vegetação destruída, rios e lagos secos. Não havia água, não havia comida, não havia nada além de fome, sede, dor e desespero.
      O anão glutão era o último herdeiro de seu milionário clã. Não trabalhava, não estudava, com nada se preocupava além de comer e degustar, provar e devorar. Ficou alheio de tudo o que ocorria no planeta, e seu vocabulário ficou restrito a palavras como café da manhã, desjejum, jantar, ceia, lanches, sobremesas, e todos os tipos de comida que era possível se dizer. Organizara um imensa despensa em sua mansão, capaz de alimentar toda a cidade durante vários meses. E por vários dias,semanas e meses ficou trancafiado em sua despensa, comendo e engordando. Não demorou muito para que começassem a chamá-lo de o “Anão Glutão” por toda a cidade, o homem pequeno de altura, mas grande de largura.
      Nunca imaginara que um dia passaria por tamanho desespero, por tão grande privação de comida. Lá seu dinheiro não valia nada, não tinha nada além de suas gorduras acumuladas, que o atrapalhavam para fugir dos retirantes sulinos que o perseguiam como se fosse um suíno. Via que todos lutavam para sair da cidade, pois havia boatos que a seca iria piorar cada vez mais, que era necessário chegar logo à costa, pois lá haveria água e comida. Mas como haveriam de lá chegar no estado em que se encontravam? Foram abandonados pelo resto do país, principalmente pelo Nordeste – talvez faziam isso de vingança, pois o sul os havia abandonado nas inúmeras secas que sofreram. Eram agora os párias do país os retirantes sulinos, e entre eles um anão suíno.
      Com suas tralhas amontoadas em uma trouxa, o anão glutão começou sua caminhada ao leste do Estado, se juntando aos retirantes que ainda não tinham interesse em devorá-lo, pois parecia de fato um leitão apetitoso! E como era desastrado! Por mais que não havia ajudado ninguém em sua vida, tão ocupado estava em suas refeições, seus conhecidos não haviam desenvolvido um rancor grande o suficiente a ponto de abandoná-lo. Mal conseguia andar, sua gordura balançava para todos os cantos, e os outros tentavam ajudá-lo, mas era em vão! Aqueles montes de ossos ambulantes nunca teriam força para levantar aquele leitão! Não por vontade própria – embora, lá no fundinho, estivessem até gostando de ver aquele monte de banha egoísta apodrecer no solo quente e escaldante – o abandonaram.
      O anão, em seu desespero, se rastejava para onde podia, procurando ao menos água encontrar. Lembrou-se que em suas pesquisas culinárias havia lido sobre uma planta nordestina que resistia ao calor, e podia matar tanto a fome quanto a sede, pois dentro dela havia uma certa quantidade de água acumulada. Mas haveria de existir aquele tipo de planta no sul? Também se lembrou que tinha visto uma vez na televisão, em uma das poucas vezes que a ligara, que, devido a mudança abrupta de clima que o Brasil estava passando, algumas plantas começaram a aparecer em locais antes nunca vistos; o país vivia um verdadeira confusão climática. Não deu muita bola, pois estava muito ocupado preparando suas pizzas para o jantar.
      Bem, a planta se chamava Carnaúba, Carnaúba Macauã, uma raiz, que o anão exaustivamente procurou. Para sua sorte, encontrou uma pequena plantação em uma região muito próxima de onde estava. Sabia prepará-la, pois tudo em que no meio havia comida, o anão de tudo sabia! Comeu, comeu, bebeu, matou sua sede e fome, e ali passou alguns dias, tentando ganhar as forças necessárias para seguir o caminho do restante dos retirantes. Mas como fez toda a sua vida, apenas comia e esperava que tivesse vontade de se levantar, mas nunca levantava. Lá ficou, até que a tal da Carnaúba acabou.
      Entrou em desespero, e ganhou forças para levantar.Como sempre, ganhava forças apenas quando a comida acabava, e se pôs a caminhar para a direção que os retirantes haviam ido. Tinha emagrecido um pouco, pois a Carnaúba Macauã, embora matasse a fome e a sede, não possuía as proteínas e vitaminas necessárias à vida, e as reservas de gordura do anão começaram a fazer sua parte. Sentia fome. Fome e vontade de comer. Nunca sentira os dois juntos! Que calamidade! Agora delirava...
      Um bolo de morango! Bem ali, no meio de toda aquela vegetação morta, um bolo de morango! Correu, comeu, devorou...Vomitou. Era uma miragem...Na realidade, devorara um pedaço de Carnaúba Macauã podre que algum retirante havia abandonado.
      Arrastou-se para outro canto daquela areia imunda e achou um urubu morto. Na cabeça do anão era um frango assado que pedia para ser saboreado! Devorou-o até as penas, e a fome não passou. Por mais que procurasse, não havia nem restos que achasse. A única carne que havia era a de seu corpo. Havia, na realidade, mais gordura que carne, mas talvez o suficiente para a fome matar. Olhou para seu braço. No extremo da angústia e da fome, no auge do delírio, olhou para seu lado esquerdo, para ver se conselhos angelicais encontrava. Comer ou não comer? Achou o anjo. Já tinha morrido de fome faz tempo. Olhou para o lado direito à procura dos conselhos diabólicos, mas debalde. Primeiro que nem parecia o diabo, pois havia mais ossos que chifres, e segundo que também delirava em seus últimos instantes de vida. Também morreu de fome.
      Sem anjos nem demônios, decidiu sozinho. Sua fome e angústia decidiram. Devorou o próprio braço. Pecado? A fome havia passado, mas seu estômago doía...Comera mais gordura que carne! Quando a fome passou, a gula tomou posse, levando-o ao delírio extremo. Precisava comer, devorar o que quer que fosse! Sua cabeça rapidamente começou a criar miragens...Devorou seus dedos, imaginando que fossem costelinhas de porco – na realidade, os dedos do anão glutão mais pareciam carne de um leitão do que de sua própria mão!
      Terminou os dedos da mão foi para os dedos dos pés. Devorava pezinhos de porco, e logo depois as coxinhas do leitão. Devorava toda aquela carne como se fossem aqueles banquetes que preparava para si próprio aos domingos, onde comprava leitões inteiros e os assava, e logo se deliciava com todo aquele banquete! Terminou as coxinhas, pensou em devorar o peito do leitão, mas seu estômago começou a rejeitar toda aquela gordura humana, da mesma forma que ocorrera quando devorou o bolo de morango.
      Rastejou em sofreguidão em meio à selva morta, vomitando a carne de seu próprio corpo e o restante de suas tripas em meio à natureza que morria na seca inebriante. Esperou angustiado pelos sermões dos anjos e dos sais de fruta do diabo, que tantas vezes ouvira e tomara após escandalosas refeições, mas nada... Tinha esquecido que os dois já eram. Sonhava com os bolos de morango e com as tortas de frango, mas quando acordava, só tinha pesadelos, pois só via a cidade em deserto derradeiro e seu estômago em pranto. Parecia agora uma verdadeira aberração da natureza, do jeito que estava, com suas pernas e braços devorados! Morreu sob o manto de suas tripas, sabe-se lá se de fome ou de gula!


Eis a história de um anão,
Um glutão que de tudo comia de montão.

Morreu quando a si mesmo devorava,
Achando que de um leitão tanto se deliciava!

                                                                               
                                                                                                                            Adolph Kliemann
     

3 comentários:

  1. ESSA É A CARA DA BURGUESIA QUE GASTA SEM PARAR E COME OS DEDOS, MAS NAO AJUDA O PRÓXIMO...

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  2. "Adorável" Glutão... Esta saga me deixou esfomeada.. rs

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  3. Esse texto é interessante, gostei da narrativa envolvente e descritiva de uma pessoa bizarra. Isso me faz lembrar os playboys de famílias ricas que nascem e crescem sem qualquer utilidade social, vivem a falar sobre pragas sociais e não notam que fazem parte do mesmo bolo de esterco que certos tipos de pessoas fazem parte.

    Conheci seu blog através de uma comunidade literária no orkut e fico contente por conhecer mais um escritor talentoso.

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